onde sopra o vento
Publicado na colecção uma existência de papel, pelas Edições Quasi em Janeiro de 2004.
A fotogafia da capa é a frontaria de uma casa em Sabrosa, Trás-os-Montes, que a Lena fez num dia luminoso de dezembro de 2002. |
teofania
acaricia-me a amarga língua do tempo quando em vão espero o branco e a luz me cega na perda irreparável do teu rosto ou na subtil ondulação das dálias onde quer que habites eu demoro de onde eu parto reuni alguns cadernos onde outrora a alma certas tardes ausentes e outras coisas leves e perigosas como a textura matinal da pele e um bisturi de vento pensei de pouco serve esperar a floração da cinza quando urdido o luto vivacidade inútil que de meus passos despidos se alimenta partir o que me traz? se em teus olhos líquidos navego e apenas o silêncio me acrescenta? arte poética os corpos do poema erguem demoras alguns segredos que o são ainda e a gradação da luz no bordado da noite junta-se depois a densa transparência da fruta duas ou três obsessões a gosto e um gato que havia lá por casa do labor infatigável das palavras no entanto apenas um fio de silêncio me ilumina despedida ah se houvera vento e lã e lume um comboio na noite um súbito perfume vento --- pouco que fosse tempo --- quanto bastasse uma voz que me chamasse um olhar que reconheça alguma luz talvez quando emudeça a antecipação do inverno (para a cecília) por hábito talvez ou por pudor não dissecara a geada que pousava insolente no beiral do seu corpo ignorara a rápida degradação dos pormenores e o vão rumor da luz excessiva luz onde ocultava certos acordes trauteados de memória e a perigosa obstinação da noite valera-se de si pensava quando alguns olhares amados resguardara da hesitação dos pássaros e da banal brevidade da morte por hábito talvez ou por pudor silenciara a maturação dos dias sem saída as noites em que esperara inútil o fulgor matinal das tílias atendera o telefone ainda quando chovera sobre o seu rosto alado (estavas só disseram-me) é inverno sei agora que morreste |