e fico só e falo com as sombras
lisboa, 1965
nunca soube ao certo porque comprou os lírios bolbos escuros secos onde as mãos se perdem entretanto alugou casa é tradutora (as línguas um mister de ourives) escreve em segredo depois da madrugada desliga o telefone dá lições de inglês por isso hoje veio a contragosto quase por dever de ofício que a literatura não é de todo imune a estas cerimónias traz de seda cabaia onde se oculta a perfuração abrasiva do olhar o rosto suspenso de um silêncio à espera de um longe onde morar escolheu uma pulseira de tartaruga antigo sortilégio de um amor goês brilha-lhe a pele por dentro das palavras recolhe a íntima mudez carta de moledo, outubro, 1971 chega em outubro comove-a o quarto enorme lençóis brunidos a janela de guilhotina sobre um correr de hidrângeas na pensão repara janta-se cedo logo que a luz vencida contra o mar se cala tão incerta a aurora quanto fugaz o medo olhos opacos a névoa interminável comove-a o ranger do soalho o chá de lúcia-lima quando a tarde acaba a visitação das dunas se da chuva emergem como um detalhe fútil explicar-lhe-ão mais tarde que o tempo é um negócio e escreverão como um insulto: a tudo chegou tarde e no entanto sabe que cada silêncio antecipara a morte e fora em si a idade sempre inútil no guincho, fevereiro de 1973 há porém um retrato a preto e branco onde o sol os ilumina de rasante é límpida essa tarde de fevereiro a praia está deserta o mar calado circunspecto mesmo segredo que guardasse levantaram-se há pouco da mesa onde os aguarda o chá servido docinho de cereja palavras quando fogem os gestos comedidos: é frugal a habitação solar onde o dizer sobeja não antecipam ainda o rasurar das águas e no entanto tão nítida a sombra que a luz resvala nos contornos silenciosos dos seus corpos as mãos nunca se tocam em cerimónia assim a revolta das palavras, 1975 há um ponto neste livro onde o conto é mudo e a narrativa se contrai na vertiginosa progressão da exposição solar quando o termina pressente no seu tempo um tempo que a demora lhe é alheio e a que contudo só intermitentemente escapa escrevem-lhe solicitam-na querem saber se e quando as urgências multiplicam-se o país perturba-a de uma forma epicamente pública como nunca até então acontecera (só os olhos escutam sob o rigor da idade a discreta hesitação da liberdade) explica-me que uma vez por vida a história aflora triunfante ao limiar da pele e que nessa altura as palavras se aceleram e as sílabas se distendem num descerrar de vísceras incomoda-a profundamente tal impertinência dias que se sucedem excessivos e um cortejo de heróis acidentais sua escrita persegue então mais húmil rumor a transparente espessura dos pinhais pequim, leitorado de português, 1982 ainda hoje não sabe porque veio quem a tomou nos braços que faz afinal nesta cidade onde o poema é mudo e o inverno queima trouxe-a um pássaro diz ou então o medo sua banalidade insidiosa que bem perto de si reconheceu talvez apenas um repouso busque dos dias como destruições onde sua pele de seda anoiteceu viera em todo o caso pequim nesta altura um torpor voaz acordam-na cedo e está só se a palavra tomba trazem-lhe chá verde um fio de canela reverente o riso em seu redor as mãos solícitas e no entanto em si esta sepultação não tardará chora por uma única vez um choro antecipando o caminho dos grous como lágrima perfeita deposta sobre jade morrer porém não a perturba tão perecível o pássaro da lenda quanto fugaz afinal a eternidade |